02 fevereiro 2007

O vinho dos Maus

De vez em quando, para fazer-nos mal
Os instrumentos das trevas dizem-nos verdades;
Conquistam-nos com bagatelas, para trair-nos
Com conseqüências muito mais graves.

- Shakespeare, Macbeth



Depois de relatar tudo o que havia acabado de vivenciar, atrapalhando-se com as palavras diante de sua descoberta, Lacrimus começava a retomar sua postura conforme Cala
bar lhe concedia algumas informações sobre aquele lugar abandonado com seus prisioneiros e, especialmente, sobre seu frio proprietário.

_ Então, você o conhecera...? O loiro que aparece na maioria dos quadros, em diversas épocas!

_ Ele fora um dos Antigos nessa região. Seja como Vampiro, seja como mortal. Estava aqui quando Florença não era mais do que um aglomerado de mercadores, estava aqui nos tempos de Rafael e Botticceli, e estava aqui quando sua Alteza tomou o poder, expulsando nossos inimigos. Augustus Médicci. Augustus, o alto de olhos azuis. Augustus, cuja mãe era da Gália e cujo pai era romano. Causava encanto e temor por onde passava, era respeitad
o, reconhecido pelo veludo vermelho que sempre lhe fora o preferido.

_ Hm, veludo vermelho. Tão fora de moda... – acrescentou Lacrimus.

_ Sim mas, na época, era moda as capas de veludo. E ele era um perfeito patrício, de pensamento elevado, um idealista devoto à Sociedade das Rosas. Parte da força de nosso reinado vinha de até onde as veias de sua influência podiam alcançar. Mas agora...

Os olhos de Dorian parecem volta
r de uma viagem silenciosa a épocas guardadas distantes em sua memória, quando ele dá um suspiro antes de continuar.

_ Agora o que resta dele são os quadros e afrescos que pintou e aquele velho palacete em ruínas. Depois da Grande Batalha, nada mais se soube dele. Penso que o sono dos anos devem tê-lo alcançado, enfim. Ele não se perderia tão facilmente e, assim, creio que voltará em breve; quando algo lhe mostrar que chegou a hora. – diz ele virando o rosto para encarar Lacrimus – Portanto, meu conselho é de que trate aquela casa como uma residência ainda habitada.

Havia uma advertência velada nas palavras de Calabar. Não uma ameaça ou um indício de que ele mesmo interviria, mas um conselho sincero graças à estima que tinha pelo outro que compartilhava de seu Sangue.

Lacrimus estava estupefato pela serenidade do outro. Calabar sabia sobre aquela cela subterrânea sabe-se lá há quantos séculos e, no entanto, mostrava-se indiferente co
m a idéia de equiparar o valor daqueles homens não mais do que com um frasco barato e simplório para um vinho secular.

_ Não sente repulsa disso, daquela câmara macabra? Há quanto tempo aqueles... aquelas coisas estão lá embaixo? Ou melhor, você sabia o tempo todo sobre aquilo lá e me diz isso com toda a indiferença que sua face é capaz de expressar. Está me dizendo que não fará nada?

_ Não dramati
ze as coisas, meu caro. Não sou o monstro que pensa. Um demônio da noite, sim. Um devasso do inferno, sim. Não tenho como o negar; mas ainda não um monstro. Algumas vezes, em uma ou outra noite a cada 30 ou 50 anos, eu levava algum animal que caçava no bosque para eles. Era divertido – e interessante – vê-los procurando uma forma de se alimentar ainda estando presos às correntes.

A expressão de Lacrimus era de total contragosto e perplexidade. Ele fulminou o ruivo com os olhos, os estreitou,

_ Você nada fará?

_ Nada. E aconselho que seja cauteloso em sua impetuosidade. Pelas leis dos homens ou pelas leis da noite, invasão de domicílio ainda é crime...

As palavras de Calabar ecoaram pela sala, mas terminaram levadas pela brisa salgada do Mediterrâneo que entrava dançando pela porta da frente que batia...


Nenhum comentário: