06 fevereiro 2007

O mercador das Arábias

Qual é o pior dos males que nos aguardam na velhice?
Aquele que marca mais profundamente as rugas em nosso semblante?
Presenciar cada ente querido ser apagado da página da vida.
Estar sozinho na Terra, como estou agora.
- Lorde Byron, Childe Harold´s Pilgrimage


_ Há quanto tempo vocês estão aqui?

_ Tempo? – riu o mouro com certa dificuldade – Esse conceito se tornou abstrato demais para nós. Não existe tempo dentro dessa câmara.

Lacrimus estava atônito com sua descoberta. Ela examinou a aparência daqueles que via, provou um pouco do sangue de um deles. Realmente, o tempo era longo o suficiente para ter se tornado incalculável.

_ Diga-me, quem são vocês? Que bárbaro os tranca aqui? Qual a história dessa câmara? Diga-me...

O homem preso às correntes examinou o visitante, o primeiro rosto novo que via há séculos. Ele tinha vontade de falar, apesar da fadiga, tinha vontade de que alguém compartilhasse do conhecimento de sua existência desgraçada, de seu fado sem esperanças. Ele limpou a poeira da garganta, aceitou o pulso do jovem que ali estava, e mirou os olhos no chão.

_ Nossa caravana trazia mercadorias do oriente. Viajávamos pelos países e trazíamos suas novidades para a Europa. Tapetes da Pérsia, sedas do Oriente, pássaros de nomes desconhecidos, as mais finas lãs tingidas de tons incríveis, algodão e linho e bordados finíssimos e uma profusão de fitas.

Nossa vida era simples, mas bem vinda. Por Alá, nada nos faltava. A Itália eram terras boas para o comércio. Sempre lucrávamos muito por aqui. Veneza, Gênova, Milão, Roma. Naquele ano, passamos por todas elas.

Até chegarmos em Florença.

Sua luz doce e cálida banhava mendigos e comerciantes; iluminava príncipes passando com pajens que lhes seguravam as pomposas caudas de veludo, os livreiros que espalhavam seus livros embaixo de toldos escarlates, tocadores de alaúde que disputavam uns trocados.

Os homens e mulheres aqui pareciam riquíssimos, banqueteando-se displicentemente com tortas de carne fresca em casas de pasto, bebendo vinho tinto e comendo bolos cheios de creme.

O dinheiro era bonito aqui – ouro ou prata florentinos. Amarramos nossas bolsas pesadas em nossos cintos. Ao fim do último dia, preparávamos os animais para partir, quando um jovem criado veio até nós. Pedia que o acompanhássemos até a casa de seu senhor. Ele dizia que seu senhor era um homem de muitas posses, mas muito ocupado; não dispunha de tempo ou saúde para perambular pelas ruas do mercado. Ele pagaria pelo inconveniente se pudéssemos levar nossas mercadorias até sua casa. Nenhum de nós estava disposto a atrasar a viagem, mas o jovem criado ofereceu, em nome de seu senhor, comida e estadia por aquela noite. E, a cartada final, o nome Médici era por demais conhecido para que pudéssemos recusar a oferta.

Ele nos atraiu para uma armadilha, uma emboscada. Mandou preparar um jantar, um grande banquete. Ofereceu-nos sua casa para passarmos a noite. Contratou músicos e eles tocaram a noite toda. Bastava que uma taça estivesse vazia, e um de seus meninos vinha para tornar a nos servir. E era um vinho de excelente qualidade, o melhor que eu já havia provado. Meus companheiros cantaram e dançaram por toda a noite; a comida e o vinho eram fartos.

Nosso anfitrião era um nórdico loiro e alto, os olhos de uma azul profundo e vazio. Pareceu contente com o que podíamos oferecer. As mercadorias o agradaram bastante e ele ficou com a maior parte da tapeçaria. Em sua casa, nobremente decorada, ouro e vermelho por toda a parte. Vermelho, vermelho e vermelho. Aquela era a sua cor.

Augustus Médici falava com uma voz macia. Discutia filosofia, política e história. Falava sobre Bizâncio e as novidades de Roma. Ninguém dava importância se nosso anfitrião não tocasse em sua comida, não bebesse de sua taça. Todos estávamos alegres. A vinda a Florença havia sido lucrativa.

Quando já estávamos cheios, todos nós, com os sentidos atordoados pela bebida e pela música, ele passou de mesa em mesa, conversou com cada um de nós. E eu vi quando seus dentes brancos rasgaram a garganta de um de meus irmãos. Mas o álcool não me permitiu entender o que realmente acontecia quando eu caí sobre a mesa.

Quando acordei, já estava preso aqui; exatamente aqui, neste lugar, onde estou até hoje. Eram os meados de 1550.

Suas visitas sempre foram rápidas e plácidas. E ele vinha sempre, a cada dois ou três dias. Tomava de dois ou três de nós, e depois partia sem uma palavra sequer. Tempos depois, ele trouxe consigo um garoto. O jovem não se espantou conosco e não havia piedade no olhar que jogava a nós, e aquele Demônio loiro o tratava de filho. Era um rapaz já com seus 20 anos, mais ainda imberbe de rosto. Tinha um olhar frio e jeito de poucas palavras, e Médici pareceu-me sempre muito apegado a ele. Várias vezes o ouvi tratando-o por “menino dos louros”, e seu olhar denunciava o carisma que tinha pelo jovem. Algo como o pai e o filho, o professor e o pupilo; aquele certamente era seu rebento.

O menino, com feições de bretão, em algumas ocasiões também tomava de nós. Algumas vezes, numa época em que nosso anfitrião passou muito tempo sem aparecer, o garoto descia até nossa câmara. Às vezes, ficava apenas chorando num canto, abraçado aos joelhos. Outras vezes, esbravejava e praguejava em uma língua que não conhecíamos; sua fúria geralmente se voltava contra nós. Porém, ele não tinha força suficiente nos punhos para nos causar algo irremediável pelo tempo.

No entanto, muito tempo depois, tempo demais, Médici apresentou-nos outro de seus pupilos. Outro jovem, mas bastante diferente do primeiro em personalidade. Era extravagante, com uma queda mórbida para o sadismo. Diversas vezes, a casa ficava sozinha. Ele se divertia conosco, nos sangrava, açoitava-nos com fogo, soltava ratos na câmara, permitia que os criados abusassem de nossa imobilidade. Certa vez, ele se sentou em frente a Giuliano com uma caixinha de madeira. De dentro dela tirou tesouras e bisturis, e outros instrumentos estranhos. Ele lhe abriu o peito e lhe tirou os órgãos diante dos olhos do pobre homem. Giuliano às vezes desmaiava, mas o Demônio o fazia despertar com álcoois que lhe dava para cheirar. Lembro-me de quando ele lhe arrancou o coração ainda batendo e fez o pobre tomar de seu próprio sangue. Ele abandonou meu companheiro em flagelos bem à minha frente; as vísceras e seu abdômen aberto ele deixou para os ratos quando subia as escadarias ainda rindo. Quando Médici voltou, dias depois, Giuliano ainda estava vivo.

O homem parou seu relato, tossiu. A presença de sangue assim tão perto o deixava inquieto. Lacrimus pensava. Em seus pensamentos, ele procurava organizar as informações.

_ Dê-me de seu punho novamente, senhor! Por favor, preciso disso...!

_ Ainda não. Primeiro, como se chamavam os garotos? Os jovens que vinham até aqui junto de Médici?

_ Não sei... Não sei o nome do bretão. O Demônio sempre o tratava por “meu menino”, ou “menino dos louros”. Se um dia chegou a proferir-lhe o nome, minha mente ocupou-se em esquecer. Mas o outro...

_ O outro...?

_ Ele tinha um nome alemão. Ele mesmo o disse a nós, para que guardássemos o nome daquele que seria o Príncipe da Noite. Ela parecia um tirano, um ditador. Mas também tinha algo de líder junto àqueles olhos negros de demônio.

_ O nome dele... qual era o nome dele?

_ Não lembro ao certo... Algo como Loudin ou Ludwin. Tenho certeza de que era um nome alemão. – o homem fez uma pausa, enquanto Lacrimus parecia pensar - Seu sangue, senhor! Dê-me o sangue...!

_ Loudin, Ludwin... – murmurou Lacrimus consigo mesmo. O nome de Augustus Médicci não lhe era desconhecido, mas o outro lhe era estranho. Ele procurava concentrar-se para tentar se lembrar de qualquer coisa que o ajudasse a ligar as informações.

_ Dê-me o seu punho, demônio maldito! – o homem esbravejava batendo as correntes, o rosto já marcado por lágrimas vermelhas, mas Lacrimus parecia não ouvi-lo; sentado ali no chão, ele pensava.

Um certo silêncio se fez. O homem parou de praguejar, os outros pararam de gemer.

_ Não tenho mais esperanças de me salvar. Sei que sou um demônio agora. Não desejo minha morte, pois tenho medo de encarar a face de Alá. Senhor... Senhor, peço que me liberte! Por favor! Liberte-me e eu o seguirei! O seguirei pelas sombras dos djins até o Inferno, mas não me deixe permanecer aqui!

Lacrimus olhou para o homem como se ele fosse apenas uma ilusão, como se não estivesse ali. Depois voltou à escadaria e tomou seu caminho para fora da câmara.

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